Apresentação do Livro "As Razões da Terapêutica"

"As Razões da Terapêutica"- Empirismo e Racionalismo na Medicina, Almeida, Eduardo, EDUFF, 2ª edição revista e ampliada, 2011

Em trabalho anterior1, abordei a terapêutica da medicina contemporânea, em particular a prescrição médica em ambulatório. Na ocasião, pude verificar a falta de correspondência entre a diagnose, ou a ausência de diagnose, e a terapêutica empreendida. Constatei a importância da informação produzida pela indústria farmacêutica na formação do médico e na conduta terapêutica (saber farmacêutico).

A terapêutica foi assumida quase exclusivamente pela indústria farmacêutica - produtora de pesquisa, do medicamento e de informação (saber e marketing). O médico tornou-se um mero receptor de informações oriundas da indústria farmacêutica. Não houve nesse fato, ao contrário do que muitos pensam, usurpação de um direito do médico. Houve uma concordância e, mesmo, uma delegação; o médico delegou a produção do saber terapêutico à indústria farmacêutica.

Confesso minha perplexidade quando tomei consciência desse quadro e, de forma um tanto reativa, optei por uma espécie de militância terapêutica. Movido pela vontade de saber acerca da terapêutica, estudei outras medicinas e sistemas médicos, que me proporcionaram possibilidades de recuperação de um certo ecletismo terapêutico, presente na minha trajetória atual.

A referência à trajetória pessoal tem a função de salientar o papel doublé do autor. Convivem, lado a lado, o estudioso das doutrinas médicas e da história da terapêutica e o terapeuta praticante. Não será dificil perceber a alternância entre o escrito analítico e de relativização histórica, e o discurso engajado do terapeuta praticante. Ressalto, de inicio, essa característica. Na verdade, considero-me mais um terapeuta engajado na busca do resultado terapêutico do que um estudioso diletante. Assumo um discurso afirmativo e, às vezes, atemporal, como sói acontecer com qualquer terapeuta.

A história da medicina tem privilegiado, de modo quase absoluto, o estudo do saber médico segundo a dinâmica interna de produção de conhecimento sobre as doenças. Outrossim, paira sobre o processo de intervenção médica com objetivos terapêuticos e preventivos significativo grau de desconhecimento. Ackerknecht, num dos poucos estudos abrangentes sobre o tema, critica os historiadores que centram seus estudos nos clássicos médicos e ignoram o que acontece com os doentes. Ainda segundo esse autor, do ponto de vista da sociedade e do indivíduo, a terapêutica e a prevenção são os aspectos principais de interesse. Conclui afirmando: " a história da terapêutica é a história dos erros médicos, ponto vulnerável e mais frágil da medicina até recentemente."2

Não se deve atribuir o lugar secundário destinado à terapêutica a um esforço de ocultação dos fracassos médicos, embora isso talvez seja verdade na historiografia biográfica ufanista; esse lugar é consequência do próprio modelo de conhecimento da medicina contemporânea, onde a produção do saber sobre a doença, segundo o modelo mecânico-causal, passa a ter destaque absoluto, e se cria uma ciência das doenças.

A medicina tornou-se uma ciência das doenças, e os médicos passaram a ser agentes de investigação. O processo de intervenção com fins terapêuticos perdeu seu lugar, foi empurrado para a periferia do núcleo de preocupação da medicina. No plano do ato médico consumou-se o domínio da diagnose sobre a terapêutica.

A obra clássica de François Dagognet, de 1964, "La Raison et les Remèdes ", foi referência inicial e inspirou o título desse trabalho. Essa obra é uma das poucas reflexões sobre a terapêutica médica3. Dagognet desenvolveu uma epistemologia ao estilo bachelardiano - relativização do conhecimento, integração de uma racionalidade ampla com a riqueza do imaginário, e a passagem do conhecimento vulgar ao conhecimento científico. O remédio e suas interseções com o simbolismo, o fetichismo, o exotismo, a cultura, o empirismo, o milagre, a cura e, finalmente, com a ciência racional (farmacologia, bioquímica), é um objeto extremamente rico à abordagem, segundo a epistemologia de Bachelard.

Dagognet analisa, com erudição, os aspectos da representação da cultura, destaca a necessidade de se considerar não só a descoberta do medicamento (matière médicale), mas a maneira de usá-lo (prescrição - quando, quanto e porque).

É clara em seus escritos a tendência de privilegiar uma "epistemologia da farmacologia e da bioquímica". De acordo com Moulin4, Dagognet, nesta obra, convive com uma tensão entre duas filosofias no seio da profissão - a biológica e a médica. Mas, nos escritos posteriores esta tensão parece dispersada com a adesão à "vitória da bioquímica moderna e a consequente morte de uma certa medicina". Dagognet partilha com Bachelard de uma confiança no poder dos homens e do otimismo no progresso da ciência.

Enfim, Dagognet, em "La Raison et les Remèdes ", buscou construir uma racionalidade para o remédio. Racionalidade ampliada, presa ao modelo da epistemologia das ciências.

Abordo a terapêutica médica considerando-a um dos constituintes do universo da terapêutica, sem a reduzir à terapêutica medicamentosa e à cirurgia, instâncias onde é possível a busca de cientificidade, segundo o modelo dominante. A terapêtica diz respeito ao processo do saber lidar, do tomar a decisão acertada, da conduta médica. Intervenção que demanda saberes tanto no âmbito da cultura, quanto no da biologia (fisiologia e da farmacologia).

A conduta médica (terapêutica) obedece a razões de várias ordens. Razões das disciplinas científicas ou auxiliares da medicina, razões da cultura , razões da corporação médica, razões econômicas e sociais, etc. Portanto, quando falo em razões da terapêutica, falo no sentido da demanda que esta suscita, e não no sentido filosófico-epistemológico simplesmente. Na verdade, não considero a terapêutica um campo onde se possa aplicar uma razão exclusiva, seja no modelo clássico da razão apolínea, seja no modelo da razão técnica de base química.

Definido, ou pelo menos justificado, o objeto, passo a seguir a enunciar algumas questões e constatações centrais, verdadeiros a priori a delinear a abordagem dos vários temas visitados:

1. Em qualquer medicina, o processo do conhecer/explicar (diagnose) e do agir (terapêutica), dialogam com maior ou menor grau de dificuldade/assimetria. Na medicina ocidental contemporânea, diagnose (ciências das doenças) e terapêutica têm revelado acentuado grau de assimetria. Desconhecer esse fenômeno tem permitido a separação de diagnose e possibilidades terapêuticas; ou seja, quanto mais a medicina se aprofunda na metaconstrução diagnóstica, mais dificil se torna encontrar correspondência direta no plano da terapêutica, já que os recursos terapêuticos se encontram em outro plano.

2. Nas várias medicinas, mesmo naquelas com diálogo fácil entre diagnose e terapêutica, esta última ainda mantém graus variáveis de independência em relação às teorias médicas. A terapêutica não é um campo dependente da diagnose, tem brilho e personalidade próprios. Mesmo na medicina ocidental contemporânea, onde vigora a hegemonia do racionalismo mecânico-causal, a construção e o desenvolvimento do campo da terapêutica se tem dado, em grande medida, pela contribuição do empirismo. Além disso, grande parte da conduta medicoterapêutica não encontra amparo nas teorias médicas, e sim na cultura, na vida sócioeconômica, na ideologia ou na experiência do terapeuta. O intervencionismo ou o conservadorismo terapêuticos, por exemplo, não são descendentes diretos desta ou daquela doutrina médica, são expressões de concepções e de estilo de pensamento médico, frequentemente sem amparo doutrinário.

3. Considero terapêutica qualquer etapa do ato médico - o escutar, o examinar, a solicitação do exame complementar, o aconselhamento, a interdição, a dietética e a prescrição. Até mesmo a diagnose assume dimensões terapêuticas, principalmente, nas sociedades altamente medicalizadas, onde a busca do "saber o que tenho", costuma ser a primeira demanda do cliente. Na verdade, apenas o exercício mental (raciocínio clínico) do médico pode ser considerado como não terapêutica.

4. A terapêutica deve ter como principal parâmetro de avaliação o resultado, e não a coerência lógica dos seus pressupostos; assim, não haveria incompatibilidade entre os vários sistemas terapêuticos.

5. Muitas vezes a prática terapêutica se sustenta, empiricamente, na própria terapêutica; não há, portanto, a necessidade de se a validar pelas fisiologia e patologia. Não caberia, assim, à terapêutica o ônus principal de demonstrar os fundamentos e possíveis mecanismos envolvidos.

6. Desde Hipócrates, o pensamento médico se move entre duas tendências básicas - o racionalismo e o empirismo. As rupturas, as mudanças de paradigmas, ocorrem no plano das disciplinas auxiliares; essas mudanças radicais influenciam fortemente a medicina, mas não rompem com a essência do processo que orienta a dinâmica da arte médica.

Meu estudo, de acordo com a concepção de terapêutica expressa acima, tem dificuldade em encontrar material nas obras de história da medicina centradas nas teorias médicas. Mesmo a história da terapêutica baseada na história do pensamento medicoterapêutico traz ajuda limitada. Minha fonte fundamental seria a história da prática terapêutica médica. Só o inventário da prática terapêutica consegue fazer emergir tanto a realidade do ato médico, quanto o processo de interação com o indivíduo e com a sociedade, sem o véu do discurso e das teorias médicas.

Uma história da medicina com a história da terapêutica no centro coloca em cena atores completamente alijados da história da medicina centrada na história das ciências.

O caso do famoso pesquisador alemão Robert Koch (1843-1910) é exemplar neste sentido. Todos o conhecem como pai da microbiologia moderna, mas a prática terapêutica desenvolvida por ele não é digna das mesmas reverências. O desenvolvimento da terapêutica com a tuberculina resultou numa verdadeira tragédia, pois milhares de pessoas perderam a vida. A dose de tuberculina usada por Koch era um milhão de vezes superior ao atualmente aceitável; o insucesso foi tão grande que o famoso cientista se autoexilou no Egito, a título de estudar uma epidemia de cólera e afastar-se do centro do escândalo.

Deter o conhecimento da "doença tuberculose" e isolar seu agente causal, não foram suficientes para que Koch obtivesse uma terapêutica eficaz. Com o uso da tuberculina, Koch lançou mão de um principio do método homeopático, mas desprezou os ensinamentos quanto à dose e ao experimento clínico.

Koch, um pesquisador dogmático e inflexivel, pagou caro por uma postura de base racionalista em relação à terapêutica. Não escutou a experiência dos homeopatas, nem as evidências iniciais das suas próprias pesquisas clínicas.

Este fato, e dezenas de outros semelhantes, ilustra também uma das teses defendidas neste trabalho - a terapêutica tem sido, desde Hipócrates até os dias de hoje, um campo de afirmação do empirismo, ou dito de outra forma, tem sido, sobretudo, a manifestação de uma ciência empírica. O empirismo tem sido capaz não só de oferecer a grande maioria dos novos medicamentos, mas de considerar a interação do medicamento com a complexidade e a singularidade do organismo. Contrapõe-se, assim, à característica fundamental do medicamento segundo a lógica racionalista - ação do medicamento definida a priori (pela estrutura química, na medicina contemporânea), sem considerações sobre o organismo receptor.

A análise da prática terapêutica médica não é uma tarefa simples. Muitas vezes a mesma conduta terapêutica se apoia em concepções opostas. É comum, na história da medicina, a afirmação de novas teorias médicas e a manutenção de práticas terapêuticas vinculadas à teoria superada. Concordo, com Canguilhem, quando ele afirma ser a terapêutica um campo privilegiado para o estudo da permanência de práticas exitosas, apesar da hostilidade de teorias médicas dominantes. Indo mais além, diríamos ser a própria prática médica um espaço adequado ao estudo da incoerência, se ficarmos no plano da coerência lógica, entre o discurso (teoria) e a prática.

A prática médica tende a atropelar as tentativas analíticas de enquadre histórico. O modelo do Racionalismo - Empirismo mostra consistência quando aplicado ao pensamento médico, mas quando se analisa a prática de determinado autor nota-se, principalmente entre os adeptos do racionalismo, orientações oscilantes e a admissão, aqui e ali, da perspectiva empírica. Parece que, apesar do dogmatismo e da inflexibilidade, a busca do resultado diante dos desafios do adoecimento fala mais alto, tende a romper os limites rígidos das doutrinas.

A trajetória de Pasteur é um exemplo nesse sentido. Um dos pais da moderna microbiologia, da teoria do germe e da especificidade doença/agente causal, soube, como ninguém, tirar proveito das evidências e do saber empírico, mesmo se em choque com suas premissas teóricas. Utilizou-se de categorias do empirismo como terreno, predisposição, terapêutica pelos semelhantes, e extraiu de um achado empírico (a atenuação) ensinamentos que lhe permitiram êxitos no controle de várias doenças.

Devo antecipar que este não é um trabalho de história da terapêutica, apesar seja esta o centro da minha argumentação. Valho-me, sem a pretensão de chegar a construções totalizadoras nem normativas, de fragmentos que destacam e submetem à discussão algumas das grandes questões deste campo do saber. Considero esta tese um percurso de um autor, médico, por questões centrais e estratégicas de um campo do conhecimento médico vasto e complexo. É evidente que deixei de abordar temas da maior importância para a terapêutica, entre eles os da questão da cura, e da "terapêutica preventiva". A medicina ocidental é herdeira, nesse aspecto, da tradição hipocrática da díaita, a produção discursiva médica a respeito das normas e hábitos para uma vida saudável. A própria medicina contemporânea tem desenvolvido volumoso material neste sentido, agora não mais orientado para o modo de bem viver a vida, mas para se evitar a doença.

Os temas seguem uma lógica de desconstrução de sensos comuns e de concepções arraigadas do discurso médico dominante. É interessante notar como são frágeis algumas das principais premissas a sustentar este discurso.

No primeiro capítulo (As Razões do Saber Médico), trato da relação complexa entre diagnose e terapêutica na medicina, em particular na medicina ocidental contemporânea. Aqui o descompasso diagnose/terapêutica é tão grande que foi possivel estruturar uma medicina e dar-se papel secundário à terapêutica. Inspirado no vitalismo e nos preceitos éticos, reafirmo ser a terapêutica a função precípua da medicina. Procuro demonstrar que a hegemonia da diagnose não surge com a medicina ocidental contemporânea, mas acompanha o pensamento racionalista na medicina. Para sustentar essa afirmação, recuo até a época de Hipócrates e constato, através da análise da Coleção Hipocrática e dos escritos médicos de Aristóteles, a existência das doutrinas racionalista e empírica, expressas na época, pelo debate em torno do logos e da experiência. Em seguida, identifico as construções das ciências auxiliares (bioquímica, biofísica), como a versão contemporânea do logos da era hipocrática.

No segundo capítulo (As Razões do Remédio - O Racionalismo), ilustro através de um estudo das descobertas dos medicamentos químicos, o resultado da assimetria entre diagnose (ciência das doenças) e terapêutica na medicina contemporânea. Apesar de todo o discurso científico da terapêutica química, cerca de 90% dos medicamentos foram "produtos do empirismo"; por isso, sustento estar o campo da terapêutica ligado ao empirismo de modo sólido.

A diagnose de doenças e mesmo a evidência de seus possíveis mecanismos, não implicam na descoberta da terapêutica apropriada. Valendo-me dos trabalhos de Goodwin, pude concluir, também para a medicina contemporânea, o que já havia notado na história da terapêutica tradicional - o predomínio absoluto do saber empírico na descoberta dos medicamentos.

Dessa forma, busco desmistificar o modelo do desenho racional do medicamento e, por consequência, a imagem de cientificismo patrocinada pela indústria químicofarmacêutica e apropriada pela medicina. O desenho racional do medicamento seria um modelo idealizado em que teríamos um determinado medicamento previamente desenhado (ação e mecanismo de ação) para agir em determinada doença. Ou seja, descobre-se e se conhece um medicamento, para depois se o usar em uma doença com mecanismo semelhante. Isso quase nunca ocorreu na história da terapêutica química moderna. Os medicamentos têm sido descobertos ao acaso, nos processos de testagem em massa (screening), e na modificação de moléculas (cópias). Essas evidências corroboram a afirmação do famoso médico empírico Celsus, contemporâneo de Galeno: "O remédio não é uma descoberta que segue um fundamento, mas só após a sua descoberta é que se lhe busca o fundamento".

Na mesma linha da desconstrução das teses racionalistas na terapêutica, abordo a relação teorias médicas/concepções sobre as doenças versus terapêutica. Para tal, tomo o estudo sobre o "efeito tomate" - abandono de medicamentos eficazes a partir de mudanças nas concepções médicas. Decido também olhar o movimento do ceticismo terapêutico sob o mesmo ponto de vista, identificando no ceticismo a perplexidade médica com a afirmação de novas teorias sobre as doenças e a necessidade do agir terapêutico.

Através do movimento do ceticismo terapêutico, busco abordar um século que experimentou profundas mudanças na medicina e na terapêutica. O século XIX se iniciou sob a hegemonia das concepções dinâmico-funcionais, e terminou sob o domínio da concepção ontológica da teoria do germe e da doença específica. Na terapêutica, o século XIX assistiu à derrocada da terapêutica tradicional, o surgimento do ceticismo e da homeopatia de Hahnemann.

O racionalismo contemporâneo evoluiu com a introdução da quimioterapia específica de Ehrlich (1854-1915), do ceticismo à crença ilimitada no medicamento químico. Faço uma abordagem histórico-epistemológica do nascimento da quimioterapia e dos fundamentos teóricos da ação do medicamento químico (teoria dos receptores). Friso ser a quimioterapia contemporânea herdeira das concepções que se cristalizaram desde a teoria microbiana e a da doença específica, que obedecem à lógica da química - germe visto como um produtor de substâncias químicamente ativas e não como um ser vivo. Isso explica o início da quimioterapia pela cristalografia (toxinas semelhantes aos cristais), e depois a utilização da teoria dos receptores/cadeias laterais.

No terceiro Capítulo (As Razões do Remédio - O Empirismo), analiso a tradição terapêutica do empirismo, e faço contraponto com as teses do racionalismo terapêutico. Utilizo a questão da terapêutica pelo similar para fazer este percurso. Situo a obra de Hahnemann como o ápice da tradição da terapêutica empírica, e destaco ter Paracelsus antecipado várias descobertas usadas no desenvolvimento da homeopatia de Hahnemann. Finalizo esse capítulo identificando os principais pontos vulneráveis da quimioterapia moderna, desde as críticas internas do próprio campo e também daquelas oriundas do campo das medicinas empíricas, em particular da homeopatia.

No quarto capítulo (As Razões da Cultura), busco desfazer o mito de que a terapêutica médica se sustenta apenas no conhecimento biomédico e na farmacologia. Abordo a influência da cultura geral e do estilo de pensamento médico, utilizo o interessante trabalho de Payer sobre a prática médica em quatro países ocidentais (Inglaterra, França, Alemanha Ocidental e E.U.A.). A autora pôde perceber diferenças significativas na prática e na própria concepção médica, deixando evidente o quanto a cultura geral, e o pensamento médico, em especial, são determinantes nas condutas terapêuticas.

No quinto capítulo (A Terapêutica e suas Razões), estudo a peculiaridade do campo da terapêutica, sua autonomia em relação às teorias médicas e aos modelos explicativos do adoecimento. Ao relativizar a diagnose, a terapêutica se abre à consideração da individualidade, resgata a dimensão de arte, na medicina, capaz de lidar com a singularidade de cada enfermo. Identifiquei duas ordens de temas a serem abordados. Em primeiro lugar, aqueles ligados à estrutura de conhecimento própria do campo. Relaciono alguns dos princípios, paradigmas e concepções na terapêutica, tais como: terapêutica pelos contrários/terapêutica pelos similares, poder curativo da natureza/organismo, especificidade, individualização/generalização, ativismo/conservadorismo, reatividade orgânica/determinismo patológico, o placebo. Em segundo lugar, os temas ligados à validação e à função da terapêutica.

Antes de concluir, sinto a necessidade de deixar explícita minha posição a respeito de dois aspectos da terapêutica da medicina contemporânea analisados criticamente em várias passagens.

Às vezes é dificil dosar a crítica e, amiúde, fica a idéia que não representa a posição do autor. O primeiro aspecto diz respeito à importância do saber a priori, da diagnose para o agir terapêutico. Não desconsidero o valor da diagnose. Entretanto, faço questão de assinalar que existe diagnose e diagnose e, não é indispensável uma diagnose de entidade nosológica para se estabelcer uma terapêutica.

O segundo refere-se à avaliação da terapêutica química atual. Não nego os vários avanços proporcionados; minha crítica está dirigida ao pensamento simplificador e aos interesses econômicos, que "fecham os olhos" a uma série de evidências fundamentais à reorientação do campo para um plano mais eficiente e seguro. Na verdade, considero a simplificação e o reducionismo os grandes inimigos da terapêutica, seja lá qual for a doutrina que a patrocina. O agir terapêutico está condenado, por sua própria natureza, a lidar com a complexidade do ser humano. Esse saber é incompatível com simplificações, semelhantes à idealização da bala mágica de Ehrlich, que dominou, e ainda influi sobre, o pensamento terapêutico da medicina moderna.

Lavoisier5, há dois séculos, definiu a terapêutica como a arte de se administrar um remédio do qual nada se conhece, a um doente que menos se conhece ainda. Expressava, assim, sua descrença na terapêutica tradicional; mas esse seu comentário se fundamentava, acima de tudo, no paradigma da nova química que ele ajudou a desenvolver. Hoje em dia, após o espetacular desenvolvimento do ciclo da química na terapêutica, acho oportuno retomar as palavras de Lavoisier, substituindo o implícito do saber químico pela perplexidade diante da complexidade do ser vivo homem.

Por último, rogo por alguma tolerância pela invasão de alguns campos disciplinares e os consequentes atropelos conceituais. A companhia da causa terapêutica levou-me, pela sua idéia de finalidade, a visitar vários campos do conhecimento humano e, algumas vezes, a emitir opiniões um tanto ou quanto presunçosas, ou talvez irrealistas. Acrescente-se ainda o lado gauche do autor no questionamento de um certo discurso científico que teima em demarcar territórios disciplinares, como se tudo não pertencesse à esfera da vida.

1. Ver Almeida, 1988

2. Ackerknetch, 1973,1.

3. O Index Medicus cataloga os trabalhos publicados relativos a este campo na rubrica "Therapeutics ". Chama a atenção a pobreza numérica e qualitativa. Fiz um levantamento de dez anos e não havia uma média maior do que vinte trabalhos/ano.

4. Molin, A., "Biologie sans vivant, médicine sans malade ", Canguilherm, G. (org.), 1984.

5. Nas próprias palavras de Lavoisier: "médicos administram remédios que eles pouco conhecem, para curar doenças que eles conhecem menos, nos humanos que eles nada conhecem." (Eugene Brussell, ed.. Dictionary of Quotable Definitions. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1970,150)

Índice

Introdução

Capítulo I - As Razões do Saber Médico: Diagnose e Terapêutica

Introdução

Logos e Experiência

A Experiência

O Logos das Ciências Auxiliares

Referências

Capítulo II - As Razões do Remédio - Terapêutica Medicamentosa: O Racionalismo

Remédio novo, antiga questão

Ceticismo terapêutico: Descrente ma non troppo

Quimioterapia específica: os fundamentos da terapêutica moderna

Referências

Capítulo III - As Razões do Remédio - Terapêutica Medicamentosa: O Empirismo

Terapêutica pela similitude

O Retorno a Paracelsus

Hahnemann: O simile pela prova

Isopatia: O idem na terapêutica

A Isopatia na medicina convencional

Terapêutica pelo similar versus terapêutica pelos contrários

O Telhado de vidro da alopatia

Nêmesis da quimioterapia

As contribuições do campo do inimigo

Da homeopatia para a alopatia

Da alopatia para a homeopatia

Referências

Capítulo IV - As Razões da Cultura: Terapêutica e Cultura

Cultura geral e terapêutica

Estilo de pensamento médico e terapêutica

Referências

Capítulo V - A Terapêutica e suas Razões

Crença e terapêutica

Terapêutica ou agir terapêutico?

O Simbólico na terapêutica - O placebo

Natureza medicatrix

Individualização - Generalização

Terapêutica científica - Terapêutica racional

Farmacologia clínica - Farmacologia química

Validação da terapêutica

Terapêutica e finitude

Referências

Bibliografia