Sobre a Validação na Medicina - Alguns comentários

Eduardo Almeida, MD, PhD

"Mais importante do que saber que doença o indivíduo tem, é saber que indivíduo tem a doença”

Sir William Ösler

“O principal obstáculo ao progresso não é a ignorância, mas a ilusão do conhecimento” Daniel Boorstin

Os médicos, sobretudo os que se destacam de alguma maneira, costumam ser indivíduos idealistas, empreendedores e socialmente responsáveis. Costumam fazer da profissão quase que um exercício de fé das suas convicções. Entre essas convicções temos concepções e teorias médicas que pertencem ao campo mutável do conhecimento humano. Até aqui, nada mais natural, pois estamos ainda no nível da decisão pessoal. O problema é quando ele alcança status de regulador da prática médica, como os membros dos Conselhos de Medicina, funcionários públicos dos setores normativos e reguladores. Nas suas funções farão valer os seus pontos de vista, que têm a ver com a sua cultura médica, seu estilo de pensamento, sua experiência, etc..

Isso não é uma particularidade da medicina brasileira, mas uma realidade mundial. Um médico francês, por exemplo, não lê mais do que um livro não médico por ano. Cada vez mais a medicina é dominada pela visão estreita do especialista. O especialista já traz consigo o viés simplificador e reducionista da complexidade orgânica e, no plano das idéias, é uma presa fácil do chamado discurso científico na medicina.

Dizem ser a medicina uma ciência, e que qualquer validação médica deve passar pelo crivo da ciência. Ou seja, uma determinada prática médica deve provar a sua cientificidade para ser incorporada pelo médico. Quando se fala de ciência, não está se referindo ao método científico de modo profundo e ampliado, ou da epistemologia médica, mas simplesmente se referem ao crivo dos chamados Estudos Duplos Cegos Aleatórios (EDCAs) ou no inglês Randomized Controlled Clinical Trials (CCTs), que passaram a ser sinônimo de ciência na medicina de hoje.

Gostaríamos de abrir um debate positivo sem maniqueísmos e dogmatismo, com o intuito de caminharmos na direção do objetivo primordial da medicina – o alívio do sofrimento e a cura do paciente.

Seria a Medicina uma ciência?

A incorporação parcial dos avanços científicos e tecnológicos pela medicina acadêmica trouxe uma noção quase senso comum de status de ciência nessa medicina. Por isso, os historiadores da medicina a classificam como iatrotécnica. Ou seja, uma medicina que tecnifica o adoecimento humano. Nesse processo, há uma ampla incorporação de tecnologia, que reforça ainda mais o caráter técnico. Entretanto, mesmo incorporando intensivamente a tecnologia moderna, a medicina acadêmica continua fiel seguidora das ciências clássicas.

As ciências clássicas ganharam sistematização a partir da fundação da Royal Society Inglesa, em 1660. A Royal Society decidiu as regras da produção científica. O que passou a contar é a prova experimental, não a especulação, a fantasia, a superstição – Nullius in verba – não acredite no que alguém diz! Essa era a máxima do método científico nascente. A medicina demora quase um século para aderir às ciências clássicas. No Século XIX, a medicina assumiu as teses fundamentais da física de Galileu e Newton.

A primeira grande tese das ciências clássicas está contida na célebre afirmação de Galileu: “Individuum est innefabile” - sobre o fato individual não se pode falar. A ciência só pode falar da regularidade, da repetição. Suas leis devem explicar a média, enquanto os fenômenos devem ser quantificados. De posse da lei que explicaria o fenômeno, ele se torna enquadrável e capaz de ser predeterminado. Ou seja, se conhece o fenômeno a priori. Como sabemos, todo conhecimento cria luz e sombra ao mesmo tempo. A sombra da tese de Galileu para a medicina, já havia sido percebida pelo médico Celsus no Século V quando disse: “O grande desafio da medicina é que ela produz conhecimento a partir do geral para tratar o indivíduo”.

A segunda tese é a expressão do chamado mecanicismo Newtoniano, quando defende que o todo é a soma das partes, e que é possível conhecer o todo pelo estudo das partes. Tese claramente ligada à matemática linear onde 2+2=4. O mecanicismo Newtoniano nasce da análise de sistemas mecânicos fechados de ação-reação. Aqui a matemática linear se aproxima mais da realidade do fenômeno. Mas, seria científico aplicar teses elaboradas para sistemas fechados, para conhecer sistemas abertos, complexos e não lineares, como os são os seres vivos, e o homem como o mais complexo deles?.

Frederic Vester no capítulo sobre os sistemas em seu livro Neuland des Denkens escreve: “Os sistemas vivos nunca são fechados, sempre se abrem para o exterior, são acessíveis de fora. Estamos acostumados a ver tudo que queremos examinar detidamente como unidades herméticas. Isso conduz a um modelo mecanicista que, em muitos casos, como na técnica, funciona maravilhosamente. Mas não para compreender um sistema vivo. Além disso, os “sistemas abertos” funcionam de acordo com as regras da cibernética, e isto significa que contam com a possibilidade de comunicação e regulação. Somente os sistemas abertos têm condições de se desenvolver individualmente.”

Schwartz e Russek do Human Energy Systems da Universidade do Arizona classificam as concepções que buscam compreender o organismo humano em dois grupos: a) “No Systems Concept” - o concebe como independente, estático, fechado, desconectado, linear, ao acaso, independente do estado, parte, fixo; b) “System Concept” - o concebe como interdependente, dinâmico, aberto, interativo, não linear, emergente, estado dependente, todo, flexível, criativo.

É evidente que a medicina acadêmica segue o modelo de sistema fechado segundo Vester, e de “No Systems Concept” de Schwartz. Como reivindicar ser científica quando comete tal desvio ao tentar conhecer o organismo humano??

Falaremos mais adiante sobre isso, mas para sermos mais diretos sobre a questão da medicina como ciência, farei outra indagação: que ciência consegue dar conta do homem nas suas dimensões biológica, bioelétrica, mental, emocional, anímica, espiritual/transcendente? Ou, teríamos a coragem de dizer que essas dimensões não influenciam o adoecimento humano, e deveríamos nos deter apenas ao corpo físico, como faz a medicina acadêmica sem ter a coragem de confessar?

Fica claro que não há uma ciência capaz de conhecer a complexidade multidimensional do ser humano. O conhecimento do ser só pode estar na instância da Arte, que é a instância possível e viável para articular conhecimentos tão complexos. A medicina é uma doutrina fundada na cultura. O médico deve ser um artista capaz de processar e sistematizar a enorme gama de conhecimentos, não só das ciências formais, mas de todo o acervo cultural da humanidade. Será que os poetas, os artistas, os religiosos, os gurus, os escritores, os sensitivos, também não são capazes de ajudar o médico no conhecimento do adoecimento humano?

Não cabe aqui introduzir as positividades que as chamadas ciências da complexidade, sobretudo a física quântica, vêm acenando há mais de 80 anos para a medicina, mas que ficam restritas às suas máquinas. Ou seja, a medicina usa máquinas quânticas, mas continua presa epistemologicamente ao mecanicismo newtoniano. Se a medicina fosse ciência, ela já deveria ter abandonado as teses mecanicistas e aderido às teses da mecânica quântica. Assim não o faz por ser uma doutrina, e uma doutrina tem muito mais a ver com cultura do que com ciência.

Isso fica claro na medida em que aprofundamos a prática democrática para além dos direitos civis e políticos, e caminhamos na direção do respeito às “individualidades culturais”. Esse tem sido o grande foco dos filósofos modernos entre eles Habermas. No campo médico, por exemplo, cresce o número de pessoas que não aceitam, pelo menos em parte, os preceitos da medicina acadêmica, e buscam uma medicina natural e não intervencionista. Isso tem sido contemplado em certos países com a criação de outros profissionais como o “Natural Doctor” (ND), nos EUA e o “Naturheilpraktiker”, na Alemanha. No Brasil a tendência tem sido a do médico caminhar nessa direção. Mas o CFM e os CRMs têm pressionado esses médicos e dificultado suas formação e prática profissionais. Com isso, entregam de bandeja o nicho de mercado para “terapeutas” de baixa qualificação, já que não temos cursos de nível superior com a duração de um curso médico na área da medicina natural, como os são os citados nos EUA e na Alemanha. Portanto, mais uma medida no mínimo inócua, sob um discurso de proteção da saúde do cidadão e da ética médica, quando de fato estão reproduzindo, muitas vezes sem o saber, os interesses dos oligopólios no campo médico.

Estudos Duplo Cego Aleatórios

O processo atual e mundial de validação da medicina está centrado essencialmente nos chamados Estudos Duplo Cego Randomizados ou Randomized Controlled Clinical Trials (RCCT). Em homenagem à origem e a forte valorização desse método pela cultura médica inglesa e norteamericana, usarei o termo em inglês Randomized Controlled Clinical Trials (RCCTs) ao longo desse artigo.

Os estudos clínicos de observação ou os testes clínicos de seguimento simples não randomizados e não comparativos surgem na medicina com os trabalhos de observação clinica de Hahnemann, na época, chamados de estudos em anima nobilis. A medicina de Hahnemann e o seu método eram essencialmente empíricos.

Na primeira metade do Século XX, a epidemiologia inglesa começou a sua marcha na construção do método hoje hegemônico dos RCCTs. Inicialmente, buscava-se identificar nexos causais entre um determinado fator e uma doença. O primeiro grande estudo foi o nexo causal entre o tabagismo e o câncer de pulmão.

Aqui cabe um comentário bastante ilustrativo da lógica que passa orientar o pensamento médico. O médico e epidemiologista Richard Doll, líder dessa pesquisa, contou que foi despertado para o estudo, quando certa vez, passando pela a enfermaria de pneumologia do hospital em que trabalhava, resolveu folhear os prontuários, e notou serem tabagistas quase todos os internados com câncer de pulmão. Saiu dali e resolveu montar um RCCT para avaliar a relação tabagismo e câncer de pulmão. Usou para tal os médicos ingleses. O resultado é de conhecimento de todos. Precisou-se de mais 20 anos para constatar através de RCCT a relação tabagismo e doenças cardiocirculatórias, e uns 25 anos para a relação tabagismo e outros cânceres. Aqui, já se delineava claramente o estilo de pensamento que passou a dominar o pensamento médico. Estabeleceu-se o consenso, avançou-se no sentido da institucionalização e chegou ao estágio atual que chamo de “ditadura do CCTs”.

Ora, desde a década de 20, várias observações médicas incriminavam o tabagismo como causador de cânceres e outras moléstias. Como se tratava de observações de casos (anecdotal) eram pouco valorizados. O JAMA, revista médica da America Medical Association, e publicação médica mais lida no mundo, foi patrocinado por três décadas (20 a 40) pela indústria de tabaco Philips Morris. Chegou a publicar artigos médicos que defendiam a troca da marca do cigarro para melhorar a tosse crônica. Nesse período, a figura do médico era o principal garoto propaganda da indústria do tabaco.

Daí em diante, a observação médica, o caso singular, a experiência, a argúcia e a sensibilidade médicas entram para o terreno do subjetivo e do não científico (empirismo). O fato científico na medicina só com a chancela dos RCCTs. Isso foi tão repetido que virou uma verdade inquestionável.

O médico de hoje quando fala que a sua medicina é científica, assim o faz porque para ele sua medicina responde ao método dos RCCTs, e que as outras medicinas ditas complementares não são científicas, porque não respondem aos RCCTs.

Vamos tratar disso mais adiante. Mas, para não perder a oportunidade do exemplo do tabagismo, gostaria de introduzir algumas perguntas. Será que realmente não podemos firmar um conhecimento mesmo que de suspeição, quando vemos pela observação individual um nexo causal? Será que não podemos aplicar o pensamento dedutivo e lógico sobre a ação conhecida de determinados fatores estressantes ao organismo e o risco de adoecimento? Será que o médico não poderia de antemão deduzir que um indivíduo que inala a combustão do tabaco, colocando para dentro de si o monóxido de carbono e centenas de outras substâncias químicas ativas, não estaria colocando em risco a sua saúde? Devemos sempre esperar que um RCCT apareça para dizer ao médico o que fazer e o que pensar?

Por exemplo, eu como clinico tenho observado o efeito tóxico do adoçante químico aspartame em dezenas de pacientes. Faço a suspeição, retiro o adoçante e o cliente reverte os sintomas. Eu não poderia concluir sobre o efeito tóxico desse adoçante, mesmo que para uma parcela da população, ou só através de um RCCT?

O experiente médico e professor da Universidade de Miami, H.J. Roberts, autor de um livro clássico da medicina clinica “Difficult Diagnosis”, também concluiu o mesmo pela sua experiência clinica, e já escreveu cerca de 5 livros sobre o tema, o mais conhecido deles Aspartame Disease: An Ignored Epidemic(2001). Não usa RCCT e sim a sua observação clínica sistemática. Isso não significa produção válida de conhecimento?

Dissecando o método RCCT

O “consenso médico” estabeleceu que o RCCT é: a) um procedimento científico; b) uma realização que segue o desenho original; c) a única maneira confiável de introduzir e avaliar uma terapêutica; d) a prática médica deve se guiar pelos RCCTs; e) Se ficar comprovado que uma terapêutica considerada eficaz, se provou ineficaz no RCCT, ela deve ser abandonada.

Quando nos aprofundamos no estudo dos RCCTs, vemos o seguinte: a) não ser científico em nenhum aspecto do termo; b) raramente é conduzido conforme seu desenho original; c) não é a única maneira, nem a melhor, para se concluir sobre novas terapêuticas; d) não afeta, como se pensa, o hábito dos médicos prescreverem.

Vamos examiná-lo à luz das regras do método científico de acordo com Northrop. Para esse autor clássico de metodologia científica, o desenho de um estudo deve seguir a seguinte metodologia: a) análise do problema; b) descrição dos elementos; c) formulação de hipóteses; d) teste das hipóteses sob condições controladas.

Os RCCTs atropelam os itens c e d de Northrop. Na grande maioria das vezes eles testam simplesmente se o medicamento X funciona para doença Y.

O destacado historiador da medicina Harris Coulter comenta em relação aos RCCTs: “trata-se de um experimento realizado sobre uma entidade misteriosa, irreal e desconhecida, um enquadramento do indivíduo doente pelos seus aspectos comuns. Tal resultado não pode ser extrapolado para além do grupo estudado”.

Alvan Feinstein da Academia de Medicina de Nova York afirma: “O que é arcaico na medicina de hoje é... a ideia de que o fenômeno natural complexo que ocorre no indivíduo doente, possa ser adequadamente classificado por uma taxonomia devotada apenas à doença.” (1976)

O RCCT é um instrumento muito apropriado para medicina acadêmica, pois sua metodologia básica é simplificar realidades complexas, através da construção de modelos gerais. Assim, o grande modelo geral construido pela medicina acadêmica – a doença e seu determinismo monocausal – é perfeitamente contemplado pelo método.

A generalização através da doença entidade específica provoca um recorte simplificador da complexidade presente no adoecimento individual. Se o médico ao invés da doença, valorizar as múltiplas determinações (ações recíprocas), que ocorrem no processo de vida e adoecimento do indivíduo, o método do RCCT se torna completamente inapropriado.

Se o médico reconhecesse que os conhecimentos referentes à vida não têm qualquer relevância para a medicina, ficaríamos por aqui. Entretanto,nem o mais conservador dos médicos seria capaz de desqualificar essa relevância. Mas, na prática, quase todos assim o fazem ao assumir os preceitos de uma ciência natural que esquivou-se da vida para ser “ciência”. Ela criou fronteiras artificiais que levam ao afastamento da medicina do organismo enquanto um sistema vivo aberto e não linear.

Podemos dizer que o método do RCCT promove os seguintes desvios: a) constrói um modelo geral para abordar realidades complexas; b) geralmente trabalha com a unicausalidade; c) quase sempre responde à lógica linear e pré-determinista; d) quanto mais complexo o problema maior o reducionismo.

O RCCT é a expressão da dominância do pensamento quantitativo na medicina, e também influência da matemática linear das ciências clássicas.“Meça o que pode ser medido, e submeta ao mensurável o que não pode”, eis o mote quantitativo. De acordo com Johnson “Um CCT é 1/10 medicina e 9/10 burocracia” (F.N. Johnson, PhD)

A grande maioria dos “RCCTs” são trabalhos laboriosos para comprovar eficácia de medicamentos ou distinguir entre formas quase idênticas de tratamento. É, hoje, o grande instrumento para a indústria farmacêutica determinar a tendência da terapêutica médica. O médico na sua prática terapêutica perdeu ou abriu mão completamente da possibilidade de ser criativo ou produzir conhecimentos sobre a terapêutica. Está cada vez mais dependente dos RCCTs patrocinados pela indústria farmacêutica - medicina de protocolos.

A determinação dos rumos da terapêutica passa sempre pelas agências reguladoras que assumiram integralmente a ditadura dos RCCTs. Mas, aqui também tem uma historinha. No final da década de 50, o episódio da talidomida provocou uma verdadeira comoção. Embora essa droga não tivesse sido aprovada pelo FDA, ela foi distribuída como amostra entre os médicos (calmante), e cerca de 1200 gestantes fizeram uso da talidomida. O médico e agente do FDA Frances Kelsey que negou a aprovação da talidomida, tornou-se um herói nacional. Em Outubro de 1962, o presidente Kennedy assinou ato que ampliava a função do FDA, que antes só avaliava a toxidade de um medicamento, e passou a avaliar também a eficácia. Mas, como se avalia a eficácia de uma determinada droga? A resposta simples e direta na época foi: “Basta retirar o efeito placebo contido em toda prescrição médica”.

Vejam que em plena crise de responsabilização da indústria farmacêutica e de evidenciação da toxidade das suas drogas, ela aproveitou para dar a sua cartada definitiva. Usar um método proposto, inicialmente, apenas para avaliar a toxidade de uma droga, para medir também sua eficácia. Na época, poucos atentaram para as consequência dessa medida, mas a indústria farmacêutica tinha claro onde queria chegar - controle da produção de conhecimento médico, controle da terapêutica, e monopólio terapêutico da alopatia.

A eficácia de uma droga segundo o método estatístico dos "RCCTs" é medida pela “significância” do resultado obtido. Definiu-se que quando a droga avaliada apresenta P <0,05 (5%) seu efeito é superior ao do placebo. Mas, quem definiu a tal “significância”?

O destacado bioestatístico H Butler descobriu, para sua surpresa, que o estatístico inglês Sir Ronald A Fischer (1890-1962), em 1925, em seu livro “Statistical Methods for Research Works” escolheu arbitrariamente P= 0,05 como uma importante variável estatística. Esse valor P< 0,05 nunca foi "científicamente" provado.

Mesmo dentro da convenção para uma terapia eficaz de P< 0,05, cerca de 1 a cada 20 estudos cai na categoria de falso positivo. Portanto, os “RCCTs” nunca foram validados!!!!

Os “RCCTs” ganharam tal proeminência na medicina de hoje, que a terapêutica validada pelo método é chamada de “padrão ouro”. A fixação no método é tão extremada, que os estatísticos têm papel central no inicio, meio e fim da pesquisa terapêutica. A observação médica está completamente secundarizada.

Veja a situação apresentada por Hoffer: um professor de medicina diante de uma mulher com quadro de púrpura trombocitopênica idiopática, disse-lhe que não havia o que fazer. Ela voltou meses depois para avaliação e estava tudo normal. A paciente disse ao médico, que um vendedor de farmácia havia sugerido que ela tomasse vitamina C 1 g/dia, e ela assim o fez.

O médico ficou curioso com o resultado e resolveu prescrever o mesmo para os seus outros clientes com problema semelhante. Tratou 8 pacientes obtendo a reversão em todos eles. Como a reversão espontânea desse problema é quase zero, o médico escreveu um artigo para publicação no New Engl J Med, mas teve a publicação negada, pois suas observações não tiveram a chancela de um “RCCT”.

O “RCCT” é um método que cai como uma luva para a demanda da burocracia no processo de institucionalização das práticas médicas (Ministério da Saúde, ANVISA, Indústria Farmacêutica, outras agências, etc) . São instituições que não precisam decidir em termos clínicos e entregam para os estatísticos/epidemiologistas a produção das normas a serem seguidas.

Médicos e clientes ainda não perceberam que as consequências desse processo recaem sobre eles. O médico vítima da ditadura dos “RCCTs” deixa de ser um produtor de conhecimento. Não se leva mais em conta a observação individual de casos e a experiência. Com isso, desaparece a arte médica e entra em cena o desenho estatístico do adoecimento e da terapêutica, acessível a qualquer um independente da experiência. Se não existe uma arte médica porque pagar por algo que não existe? São todos soldados rasos das estatísticas, dos protocolos, e das normas institucionalizadas.

Smith e Pell publicaram os resultados de investigação para saber se realmente paraquedas previnem morte ou grande trauma. Eles não foram capazes de achar um “RCCT” da ação do para-queda nesses casos. O que o autor quer mostrar é que muitas conclusões são auto-evidentes. Os defensores radicais dos “RCCTs” poderiam contribuir para o esclarecimento da ação dos paraquedas, participando como voluntários do “grupo caso”!!!!(Brit Med Journal, 2003; 327:1459-1461).

Segundo Hoffer o “padrão ouro” da moderna terapêutica médica é um método imperfeito que ainda não foi testado para se saber se realmente faz o que se supõe que ele faça. Ele induz a produção de outro grupo de problemas novos e não pode ser chamado de científico.

Mas, a grande “vantagem” dos “RCCTs” é remover a necessidade do médico pensar, chegar a uma conclusão mais acurada, e decidir. Ou mesmo aceitar o desafio de entender a complexidade do processo individual de adoecimento, e estabelecer terapias amigáveis e criativas. Mas isso não interessa ao complexo médico institucionalizado.

A grande maioria dos medicamentos e terapêuticas médicas realmente eficazes não surgiram via “RCCTs”, uma vez que elas não precisam desse método para comprovar suas eficácias, são auto-evidentes. Os “RCCTs” poderiam ajudar na avaliação da toxidade e rendimento de tratamentos de leve eficácia. Nesses casos, estudos de larga escala são necessários para evidenciar alguma eficácia.

O Dr David Horrobin questiona os estudos em larga escala e defende focar em observações curtas em diferentes centros.

Longe de mim negar a capacidade que o método RCCT tem para produzir conhecimentos na medicina. Não vou realçá-la aqui, pois não é minha missão. O que não falta são adeptos para defendê-lo. Penso que ele tem os seus méritos e importância, mas também tem limitações como qualquer outro método. Minha intenção é chamar a atenção para a limitação do método. Suas contribuições devem ser apropriadamente avaliadas e processadas pela arte médica.

Tão importante quanto valorizar os aspectos positivos do método, é perceber suas limitações. Mas, o mais grave de tudo é transformá-lo em único método válido de produção de conhecimento e validação na medicina. Aqui está, mais uma vez, a marca do pensamento mecanicista e racional, que se apropria de um método quantitativo e o transforma na única instância de validação, num claro viés cientificista.

A produção de conhecimento médico baseada na análise de casos, na experiência médica não sistematizada, tem lugar de destaque na história da medicina. Mesmo hoje com a ditadura dos “RCCTs”, cerca de 80% da prática médica oficial carece de validação por esse método. Levantamento do Office Technology Assessment (OTA), um setor de assessoria do Congresso Americano, revelou em 1978, que apenas 20% de todos os procedimentos médicos correntes mostraram eficácia através dos RCCTs. Editorial no Brit. Med. Journal confirmou esses dados, e concluiu que 85% de todos os procedimentos médicos incluindo cirurgias não foram comprovados pelos RCCTs. (BMJ, Oct. 91). Segundo artigo do JAMA: “Parte significativa, talvez a maioria da prática médica contemporânea carece de fundamentos científicos” (JAMA, 269:3030;1993) .... “Apenas um em cada dez métodos mais comuns de diagnose e terapêutica tem alguma base investigativa” (JAMA, 263:278; 1990).

Segundo Coulter a apropriação dos resultados dos RCCTs pela medicina, estabelece quase sempre um modelo de abordagem aprioristico e predeterminado, que agride o caráter individual e complexo do adoecimento humano e, por isso, não pode ser considerado científico.

“Àquele que tenta aplicar uma cadeia causal unidimensional para um sistema interconectado, não pode reivindicar ser científico”. (Thomas, 1984)

Mesmo diante da série de limitações do método RCCT e dos próprios fundamentos da medicina acadêmica, a prática médica por ela sustentada oferece resultados significativos para a cultura e sociedade que a gestou. Mas, com as inevitáveis mudanças, os desafios aparecem e seus limites são tensionados. Os limites da medicina acadêmica são hoje tensionados pelo número crescente de doenças idiopáticas, pela autoimunidade, pelas doenças crônicas que já representam 90% da nosologia médica. Nossa medicina oficial tem característica de medicina heroica, salvadora de vida, intervencionista. Esse é o seu território privilegiado, por isso o desafio das doenças crônicas é, sem dúvida, o seu grande desafio. Ela terá que alargar muito os seus conhecimentos para contemplá-lo de forma satisfatória.

O Efeito Placebo

O efeito placebo, a partir da dominância do RCCTs, ganhou um status negativo na medicina. Está implícito nesse status conteúdos como não ciência, ineficácia terapêutica, má medicina. Ora, existe um consenso de que o placebo possui uma eficácia que varia entre 36 e 42%. Como a medicina acadêmica só acredita na eficácia de um medicamento que seja uma molécula química ativa, ela simplesmente joga para debaixo do tapete o efeito placebo.

O efeito placebo evidencia uma série de questões que a medicina acadêmica não tem condições de lidar, sem abalar os seus fundamentos químicos exclusivos. Se o efeito placebo ocorre em quase 50% das ações terapêuticas, é sinal que existe uma dinâmica curativa no organismo, fortemente influenciada por “fatores extra-medicina”. Como sabemos que tais fatores são na verdade sombras ou gaps cognitivos da medicina acadêmica, eles não aparecem ou são varridos para debaixo do tapete. Cabe a um outro modo de conhecer o organismo (medicina ou sistema médico) recuperá-los e superar os limites cognitivos do modelo anterior. Isso deveria ser a coisa mais normal no ofício médico, mas a ideologia científica que impregna a medicina acadêmica e oficial obstrui fortemente essa dinâmica. Como nos ensinou Einstein “Os problemas significantes que temos não podem ser resolvidos no mesmo nível do pensamento que os criou”. Para Benson: “Muito da história da medicina é a história do efeito placebo” (Herbert Benson, Harvard University).

Manipulação dos RCCTs

A comunidade médica começa finalmente a tomar conhecimento de percentual significativo de manipulação contido nos RCCTs. Em 1994, um survey no Massachussets General Hospital com mais de 3 mil pesquisadores acadêmicos, revelou que 64% deles tinham laços financeiros com corporações; 20% admitiram que atrasaram publicação de resultados por pelo menos 6 meses para obter patentes, ou “amenizar dados negativos”.

Recentemente a ex-editora (demitida) por 20 anos do New England J. of Medicine, Marcia Angell, publicou um documento contundente a respeito da manipulação das indústrias farmacêuticas (The Truth about Drug Companies: How They Deceive Us and What to Do About It, 2004). Como diz Berg: “Comumente se você aceita financiamento de uma companhia, fica incluído uma cláusula que você não liberará dados que forem negativos. Obviamente, isso tem um impacto negativo na ciência” (Paul Berg – Nobel de Química)

O Saber Empírico

O saber empírico construído através da experiência e arte médicas, tem sido o grande manancial de conhecimento médico ao longo da história da medicina ocidental. Os RCCTs bem como as observações de Hahnemann são na essência modelos empíricos de observação. O primeiro busca um nexo entre dois fatores padronizados numa amostra. O segundo é um sistema de observação aberto para a expressão da individualidade.

Se não nos detivermos no modelo de medicina centrada na doença entidade específica, e assumirmos a complexidade do ser em suas várias dimensões: biológica, cultural, psicoemocional, anímica, espiritual, fica claro que apenas a instância da ARTE pode ser capaz de processar as várias dimensões do ser, e oferecer uma medicina de paradigma inclusivo ou uma concepção médica eclética. Sendo assim, como poderíamos então validar arte pelos RCCTs?

O processo de validação na Medicina está completamente invertido. A medicina é colocada na posição de ciência e a partir daí deverá responder ao processo lógico/racional de validação científica quantitativa das ciências clássicas.

Mas, como ARTE e mesmo como uma doutrina fundada na ética, seu campo de validação é outro. Encontra-se no terreno do resultado. Não apenas do resultado imediato e de causa-efeito quantificado pelo modelo RCCT. Mas também os avaliados através da consideração de ações recíprocas e complementares de médio e longo prazo, que as várias influências são capazes de promover no sistema aberto e não linear, só acessíveis à avaliação do médico e do próprio cliente. Paracelsus (1493-1541) para enfrentar a medicina acadêmica e burocratizada de sua época cunhou a célebre frase que deve estar sempre na mente dos médicos. Disse ele: “Quem cura tem razão”. Jorge Alonso atualizando a afirmação de Paracelsus para os nossos dias diz: “Só existe uma Medicina – a que cura”. H G Eberhardt acrescenta: “só o resultado pode unir a medicina”

Conclusão:

A medicina acadêmica é fruto da ruptura (Sec. XIX) na tradição médica do primum non nocere - valorização da força curativa do organismo.

A noção de germe e doença específicos pavimentou a entrada da química sintética na terapêutica. Através da Química estranha ao organismo a medicina prescindiu da noção de natureza curativa, e teve à mão um potente instrumento de intervenção - a quimioterapia. Química essa, que Laurent e Berthelot, destacados químicos franceses, em 1860, disseram ser uma ciência criadora de seus próprios objetos, ou seja, que muda o curso normal da Natureza.

A Medicina apropriou do discurso científico e se estabeleceu enquanto uma ciência. Desse modo, passou a ter os mesmos balizamentos das ciências clássicas: a explicação racional dos fenômenos; a quantificação; a generalização. Abriu mão da arte da terapêutica e estabeleceu o primado da diagnose sobre a terapêutica.

Tornou sem valor a observação de casos, o fato individual (anecdotal). Só é significativa a regularidade, a média, a repetição, como nas ciências clássicas. Daí o papel exercido pelos RCCTs na produção de conhecimento nessa medicina.

O médico quando abre mão da terapêutica e se preocupa essencialmente com a diagnose, dá uma espécie de tiro no pé. Deixa por conta da indústria farmacêutica a produção de conhecimento e insumo terapêuticos, e passa a ser um mero prescritor, na maioria das vezes na linha da supressão de sintomas. Isso reduz a sua eficácia terapêutica e há uma homogeinização e massificação da prescrição. Nessa equação só tem um ganhador – a indústria farmacêutica.

O médico que pratica a medicina como Arte disponibiliza para o seu cliente a sua Arte e isso lhe proporciona autonomia, reconhecimento, eficácia e diferenciação.

A defesa a ferro e fogo dos RCCTs interessa exclusivamente a indústria farmacêutica, que busca homogeneizar o conhecimento, apagando o caráter de Arte da prática médica - um atributo extremamente importante para o sucesso terapêutico.

Diria mesmo que o domínio dos RCCTs se dá em detrimento da expertise médica. É preciso que os médicos e seus órgãos de classe, sobretudo o CFM reflitam sobre isso, e considerem de forma ampla os vários processos de validação da prática médica e, ao invés de inibir com a exigência dos RCCTs, estimulem a criatividade e a busca de resultados terapêuticos que estão muito além dos possíveis recursos oferecidos pela indústria farmacêutica.

Referências

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